Analisa, além do mais, a compatibilidade entre a proteção dos dados pessoais e a necessidade do tratamento de tais dados no âmbito do exercício ou defesa de um direito num processo judicial, contra o seu titular.
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No caso em apreço estava em causa um incumprimento de um contrato de Seguro do crédito para aquisição de viatura, na sequência do óbito do segurado.
Para efeitos de prova documental, foi invocada pela Ré a cláusula de exclusão da indemnização, consubstanciada na preexistência de determinadas patologias à data da celebração do contrato, que teriam sido omitidas, sendo geradoras de anulabilidade do contrato, e, para o comprovar, requereu que o Tribunal oficiasse junto de diversas entidades hospitalares documentos clínicos.
Em sede de audiência prévia o requerimento probatório apresentado pela Ré foi indeferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, com fundamento nas seguintes normas:
a) Direito à intimidade da sua vida privada, prevista nos artigos 18.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 35.º, n.º 4, todos da Constituição da República Portuguesa, e nos artigos 70.º e 80.º, ambos do Código Civil;
b) N.º 1 do art. 15.º da Lei de Bases de Saúde (Lei n.º 95/2019, de 04 de Setembro), que determina que “A informação de saúde é propriedade da pessoa”;
c) N.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro (referente à Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde), que prevê que “A informação de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da pessoa, sendo as unidades do sistema de saúde os depositários da informação, a qual não pode ser utilizada para outros fins que não os da prestação de cuidados e a investigação em saúde e outros estabelecidos pela lei”;
d) N.º 1 do art. 31.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, Regulamento n.º 707/2016, de 21/07, que indica que “os médicos que trabalhem em unidades de saúde estão obrigados, singular e coletivamente, a guardar segredo médico quanto às informações que constem do processo individual do doente”, encontrando-se as exceções previstas no art.º 32.º, que são: “a) O consentimento do doente ou, em caso de impedimento, do seu representante legal, quando a revelação não prejudique terceiras pessoas com interesse na manutenção do segredo médico; b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico, do doente ou de terceiros, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Bastonário; c) O que revele um nascimento ou um óbito; d) As doenças de declaração obrigatória”;
E com base na inexistência de consentimento para aceder aos seus registos de saúde e a documento médicos com informações a seu respeito, e que não digam diretamente respeito à causa da morte, mas que contenham, nomeadamente histórico de patologias, intervenções e tratamentos realizados.
Entendeu, pois, o Tribunal a quo que poderia a Ré “juntar a referida evidência de consentimento dada pelo falecido, ou junto dos herdeiros obter tal autorização, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei 58/2019, de agosto, ou, ainda, poderá intentar o competente incidente de levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Médicos, nos termos previstos no artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.”
Inconformada com tal decisão, a Ré interpôs recurso.
O Tribunal da Relação alicerçou-se essencialmente no Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de abril (RGPD da União Europeia), e na Lei 58/2019, de 08 de agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais).
Assim,
Prevê o n.º 1 do art. 17.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, que “Os dados pessoais de pessoas falecidas são protegidos nos termos do RGPD e da presente lei quando se integrem nas categorias especiais de dados pessoais a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º do RGPD, ou quando se reportem à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações, ressalvados os casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo”.
Já para efeitos do disposto no RGPD; prevê a al. 15 do art. 4.º do RGPD que “Dados relativos à saúde», dados pessoais relacionados com a saúde física ou mental de uma pessoa singular, incluindo a prestação de serviços de saúde, que revelem informações sobre o seu estado de saúde”.
Por sua vez, o Considerando 35 do RGPD; que funciona como fonte interpretativa, explica que “Deverão ser considerados dados pessoais relativos à saúde todos os dados relativos ao estado de saúde de um titular de dados que revelem informações sobre a sua saúde física ou mental no passado, no presente ou no futuro. O que precede inclui informações sobre a pessoa singular recolhidas durante a inscrição para a prestação de serviços de saúde, ou durante essa prestação, conforme referido na Diretiva 2011/24/UE do Parlamento Europeu e do Conselho (9), a essa pessoa singular; qualquer número, símbolo ou sinal particular atribuído a uma pessoa singular para a identificar de forma inequívoca para fins de cuidados de saúde; as informações obtidas a partir de análises ou exames de uma parte do corpo ou de uma substância corporal, incluindo a partir de dados genéticos e amostras biológicas; e quaisquer informações sobre, por exemplo, uma doença, deficiência, um risco de doença, historial clínico, tratamento clínico ou estado fisiológico ou biomédico do titular de dados, independentemente da sua fonte, por exemplo, um médico ou outro profissional de saúde, um hospital, um dispositivo médico ou um teste de diagnóstico in vitro”;
E o considerando 51 do RGPD que “Merecem proteção específica os dados pessoais que sejam, pela sua natureza, especialmente sensíveis do ponto de vista dos direitos e liberdades fundamentais, dado que o contexto do tratamento desses dados poderá implicar riscos significativos para os direitos e liberdades fundamentais.”
Relativamente ao tratamento destes dados pessoais, dever-se-á considerar, nomeadamente, o art. 9.º do RGPD.
Assim, prevê o n.º 1 do referido art. 9.º que “É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa”.
No entanto, esta proibição não se aplicará em diversas situações, previstas no n.º 2 do referido art. 9.º.
De entre essas situações encontramos, efetivamente, o consentimento explícito (al. a)), mas também “Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional” (al. f)).
Este regime dever-se-á compatibilizar o disposto na Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, sendo que o n.º 1 do art. 29.º prevê que “Nos tratamentos de dados de saúde e de dados genéticos, o acesso a dados pessoais rege-se pelo princípio da necessidade de conhecer a informação”.
Explica assim o referido aresto que o consentimento explícito não constitui a única situação legitimadora do tratamento, sendo que a supra transcrita al. f) “permite o tratamento de dados pessoais sensíveis quando necessário (princípio da necessidade) para: (i) a declaração, o exercício ou a defesa de um direito num processo judicial; ou (ii) sempre que os tribunais atuem no exercício das suas funções jurisdicionais”.
Concretizando a finalidade prevista na transcrita al. f), entendeu o Tribunal a quo que
“a finalidade “defesa de um direito em processo judicial” tanto pode abranger um direito do titular dos dados, como um direito contra o titular dos dados. A lei não distingue, pelo que, o que importa atender é à efetiva necessidade de tratamento (na modalidade divulgação) dos dados e que esta se faça de forma proporcional, parcimoniosamente.”
Pelo que julgou procedente o recurso de apelação interposto, decidindo que “no âmbito duma atividade jurisdicional e a defesa da apelante ao direito à eventual anulabilidade contratual, reclama o conhecimento objetivo do historial clínico requerido, logo, demonstra-se a necessidade de tratamento de tais dados sensíveis, tratamento esse na modalidade de disponibilização judicial de tais informações, a ser efetuado no restrito âmbito deste processo judicial (processo sujeito a dados sensíveis), o que igualmente assegura o princípio da proporcionalidade considerando o interesse conflituante do “titular” dos dados, no caso os seus herdeiros, ora apelados, pelo que importa permitir esse tratamento”.
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Sumário:
“1 - Os dados relativos à saúde de pessoa falecida são protegidos nos termos do Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD) e da Lei de execução nacional (Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto) porque se integram nas categorias especiais de dados pessoais;
2 – Deverão ser considerados dados pessoais todos os dados relativos ao estado de saúde de um titular de dados que revelem informações sobre a sua saúde física ou mental, o que inclui informações sobre a pessoa singular recolhidas em vida durante a prestação de serviços de saúde pelos centros de saúde ou instituições hospitalares – cfr. Considerando 35 do RGPD (fonte interpretativa);
3 - Estes dados intrinsecamente pessoais, são no Considerando 51 do RGPD classificados de «dados sensíveis»;
4 – Como tal o seu tratamento é proibido nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do RGPD;
5- Assim não será se, o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, ou se, o tratamento for necessário (princípio da necessidade) à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou, sempre que os tribunais atuem no exercício da suas função jurisdicional nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do RGPD;
6 – Porque a lei não distingue, a finalidade “defesa de um direito em processo judicial” tanto pode abranger um direito do titular dos dados, como um direito contra o titular dos dados.
7 - O que importa atender é à efetiva necessidade de tratamento dos dados, devendo esta fazer-se de forma proporcional, restrita à finalidade que o justifica.”
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