Analisa a densificação do conceito de ofendido e respetiva legitimidade para se constituir como assistente no âmbito de processo crime.
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Conforme já devidamente exposto no texto publicado e acessível através do link https://www.tofadvogados.com/post/os-direitos-do-falecido-em-especial-a-vertente-criminal ,
“Já quanto aos semipúblicos e particulares, para que o Ministério Público possa promover o respetivo procedimento criminal é necessário que o ofendido ou outra pessoa com legitimidade para tal dê conhecimento do facto ao M.P. (ou a qualquer outra entidade legalmente obrigada a tal) e manifeste essa vontade – ou seja, é necessário que apresente uma “queixa” – cfr. n.º 1 e 2 do art. 49.º do C.P.P..
Por sua vez, os crimes semipúblicos e particulares distinguem-se entre si pelo facto de, nos particulares, ser ainda necessário que se constituam assistente e apresentem acusação particular, determinando assim uma posição mais interventiva no processo. – cfr. n.º 1 do art. 50.º do C.P.P..
Veja-se que, de acordo com o disposto no art. 69.º do C.P.P., os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, competindo-lhe entre o demais,
“a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;
b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;
c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.””
Quanto à legitimidade para se constituir como assistente, prevê a al. a) do n.º 1 do art. 68.º do C.P.P. que “1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;”
(sublinhado nosso).
Conforme destaca o referido aresto, esta al. a) tem “suscitado entre nós viva controvérsia, não sendo raros os casos de clara divergência de entendimentos, de tal modo que a situação tem levado até à intervenção uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça”.
No caso em apreço é investigado a prática de um crime de infidelidade, p.p. pelo n.º 1 do art. 224.º do C.P., de acordo com o qual “Quem, tendo-lhe sido confiado, por lei ou por acto jurídico, o encargo de dispor de interesses patrimoniais alheios ou de os administrar ou fiscalizar, causar a esses interesses, intencionalmente e com grave violação dos deveres que lhe incumbem, prejuízo patrimonial importante é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”, praticado por um sócio de uma determinada sociedade.
Na pendência do processo a referida sociedade foi dissolvida e extinta, tendo o sócio (que não arguido) requerido a sua constituição como assistente, invocando a sua qualidade de ofendido.
Relevando o facto de que “após o encerramento da sociedade, as obrigações que vinculam aquele ente societário transitam para a esfera jurídica dos antigos sócios, porquanto estes continuam a responder, pessoal e solidariamente, pelo passivo social não acautelado e isto porque, uma vez extinta a sociedade, os sócios sucedem-lhe na titularidade das respectivas relações jurídicas”, e que o processo penal vigente no nosso ordenamento jurídico é de um tipo “misto”, entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que “é de admitir a intervenção dos particulares no processo penal, seja como assistentes, seja como demandantes civis, pois isso em nada pode prejudicar a tramitação processual, podendo até beneficiá-la, cumprindo a quem tiver a competência para dirigir a tramitação dos autos controlar rigorosamente a dita intervenção, mantendo-a sempre dentro dos limites legalmente previstos”.
Em consequência, julgou procedente o recurso e revogou o despacho que indeferiu o pedido de constituição de assistente.
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Sumário:
“
I. O conceito de ofendido tem suscitado entre nós viva controvérsia, não sendo raros os casos de clara divergência de entendimentos, de tal modo que a situação tem levado até à intervenção uniformizadora do Supremo Tribunal de Justiça.
II. Numa situação de normal desenvolvimento da vida social de um ente coletivo, a sua autonomia jurídica patrimonial e pessoal relativamente aos sócios justifica plenamente o entendimento segundo o qual estes não têm legitimidade para intervir nas questões processuais penais cujo conteúdo respeita a matérias em relação às quais seja, tecnicamente, ofendido.
III. Numa sociedade dissolvida e em liquidação, o facto de não haver qualquer património para partilhar pode ser revertido se os crimes denunciados (v.g., infidelidade, falsificação) forem demonstrados, bem como sobre que património foram levados a cabo, podendo este, eventualmente, retornar à esfera jurídica da dita sociedade.
IV. O crime de infidelidade, “(…) pressupõe uma relação de confiança”; ora, essa relação de confiança apenas se pode estabelecer entre os gerentes/administradores do ente coletivo (porque seus representantes legais) e o infiel, ou entre os sócios e o infiel (que, enquanto tal, o elegem ou nomeiam), já não entre o liquidatário e o infiel, uma vez que aquele intervém posteriormente.
V. O processo de tipo acusatório não se restringe apenas à separação rigorosa entre acusação/pronúncia e julgamento, mas também apela, por exemplo, à intervenção dos particulares na sua tramitação.
VI. Na dúvida, é de admitir a intervenção dos particulares no processo penal, seja como assistentes, seja como demandantes civis, pois isso em nada pode prejudicar a tramitação processual, podendo até beneficiá-la.
VII. Os sócios de uma sociedade dissolvida e em liquidação - a qual, portanto, os gerentes/administradores já não comandam - podem constituir-se como assistentes num processo penal em que esta seja ofendida. “
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