Analisa a (in)existência do direito à resolução do contrato por justa causa por parte do praticante desportivo, nomeadamente por violação do direito à prestação do trabalho.
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No âmbito das relações jurídicas laborais emergentes de contratos de trabalho desportivos celebrados entre futebolistas profissionais e respetivos clubes relevam de forma preponderante a Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, e a Convenção Coletiva de Trabalho celebrada entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicado dos Jogadores Profissionais de Futebol, sem descurar o Código de Trabalho [aplicável ex vi n.º 1 do art. 3.º da referida Lei].
Ora,
Nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do art .23.º da referida Lei, o contrato de trabalho desportivo pode cessar por, além do mais, resolução com justa causa por iniciativa do praticante desportivo.
Já nos termos do n.º 3 do mencionado art. 23.º, “Constitui justa causa, para efeitos das alíneas c) e d) do n.º 1, o incumprimento contratual grave e culposo que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral desportiva”.
Tendo em consideração o disposto no art. 3.º da referida Lei, temos que, como referido no mencionado aresto, “Os clubes ou sociedades desportivas (empregadores) estão sujeitos aos deveres genéricos extensíveis a qualquer empregador constantes da lei geral do trabalho, a que que acrescem deveres específicos próprios das relações de trabalho desportivo, muito deles relacionados a direitos de personalidade e assédio”.
No capítulo III da referida Lei encontram-se plasmados [alguns] direitos, deveres e garantias das partes, relevando neste âmbito que, nos termos do disposto na al. b) do art. 11.º, são deveres da entidade empregadora desportiva, em especial, proporcionar aos praticantes desportivos as condições necessárias à participação desportiva, bem como a participação efetiva nos treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais da competição desportiva.
Além do mais, nos termos do artigo seguinte, a entidade empregadora deve respeitar os direitos de personalidade do praticante desportivo, sendo proibido o assédio no âmbito da relação laboral desportiva, nos termos previstos na lei geral do trabalho.
Já nos termos do mencionado CCT aplicável, encontram-se os critérios essenciais de aferição de justa causa previstos no seu art. 43.º.
Como tal, constituem justa causa de rescisão por iniciativa do jogador, com direito a indemnização, entre outros, os seguintes comportamentos imputáveis à entidade patronal, além do mais, a violação das garantias do jogador nos casos e termos previstos no artigo 12.º do referido CCT e a conduta intencional da entidade patronal de forma a levar o trabalhador a pôr termo ao contrato. (cfr. als. b) e e) do referido art. 43.º).
Quanto ao mencionado art. 12.º a que se refere a al. b) do art. 43.º, todos do mencionado CCT aplicável, temos que é dever dos clubes, além do mais, tratar e respeitar o jogador como seu colaborador, proporcionar-lhe boas condições de trabalho, assegurando os meios técnicos e Humanos necessários ao bom desempenho das suas funções, e cumprir todas as demais obrigações decorrentes do contrato de trabalho desportivo e das normas que o regem, bem como das regras de disciplina e ética desportiva. (cfr. als. a), c) e f) do referido art. 12.º).
Em paralelo as deveres do clube supra mencionados, prevê o art. 14.º do referido CCT as garantias do jogador, de entre as quais temos que é proibido à entidade patronal afectar as condições de prestação do trabalho, nomeadamente, impedindo-o de o prestar inserido no normal grupo de trabalho, excepto em situações especiais por razões de natureza médica ou técnica (cfr. al. d)).
Como mencionado no aresto objeto de análise,
“
Pode-se afirmar que do quadro legal decorre para o praticante desportivo um direito ao trabalho na vertente de participação no desporto, o que quer dizer nos treinos e actividades preparatórias da competição, de o fazer inserido em igualdade e no normal grupo de trabalho, excepto em casos muito específicos de natureza médica (problemas de saúde do jogador ) ou técnica (decisão da equipa relacionadas com estratégia de jogo ou disciplinar) - 11, b), do RJCTPD, 14º, d), CCT, e no regime geral 129º, 1, b), CT.
Se é certo que o jogador apenas tem direito a treinar e não direito a competir/participar nos jogos oficiais (por bizarro que isso pareça na medida em que o primeiro só existe em função do segundo, na lógica e na natureza humana), aquele direito ao treino, para ser efectivo, requer a existência de condições e a participação em treino conjunto com os demais jogadores e treinador. A carreira do jogador profissional requer boa forma física e destreza que não se alcançam em isolamento, mas sim através de exercício diário e intenso em contexto de equipa, de colaboração e interacção com o conjunto dos jogadores, mantendo ritmo e sintonia, aprendendo a conhecer os demais elementos, sendo a reunião de todas estas condições que permite a evolução do jogador.
Nisto se concretiza o direito a ser treinado, um direito de ocupação efectiva mitigado por não garantir, nem se estender, ao direito a participar nas competições oficiais. Embora esta seja a meta final almejada por todos os jogadores, a verdade é que as regras desportivas referentes ao número de jogadores que podem integrar as equipas, bem como as opções técnicas e estratégicas do treinador, acabem por condicionar a tutela da profissionalidade.”
No caso concreto, ficou provado que
a) o autor celebrou contrato com início em 22 de janeiro de 2019 e termo em 30 de junho de 2020; em agosto de 2019 a ré divulgou, na sua página oficial e através dos meios de comunicação social, que o autor iria sair do clube;
b) desde então, o autor deixou de treinar com a equipa principal de futebol; passando a treinar com apenas mais dois outros jogadores, que também deixaram de treinar com a equipa principal;
c) o autor não mais jogou pela equipa de futebol da ré;
d) no início da nova época 2019/2020, não foi entregue ao autor o novo uniforme, continuando a usar o equipamento do ano anterior;
e) o autor estava proibido de entrar no piso 1 do complexo desportivo da R;
f) o autor não podia frequentar os mesmos sítios que os seus colegas;
g) o autor estava impedido de usar o ginásio do clube, pelo que para treinar teve de se socorrer a outro ginásio pago por si;
h) o autor não frequentava o mesmo posto médico dos seus colegas, tendo na mesma assistência médica.
Como tal, em face da factualidade apurada, entendeu o Tribunal da Relação que estão verificados os pressupostos de justa causa depor iniciativa do jogador, em face de uma “Conduta intencional da entidade patronal de forma a levar o trabalhador a pôr termo ao contrato”
Relevando que tal “circunstancialismo para qualquer praticante desportivo não seria suportável, caindo na previsão legal de “incumprimento contratual grave e culposo que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral desportiva””.
Não obstante e factualidade dada como provada, inc. pelo Tribunal a quo, a ação havia improcedido derivado ao facto de o jogador/Autor ter permanecido no clube até ser possível ser contratado por outro clube, enquadrando esta circunstâncias no disposto na al. a) do art. 45.º do referido CCT, segundo o qual “Embora os factos alegados correspondam objectivamente a algumas das situações configuradas nos artigos anteriores, a parte interessada não poderá invocá-los como justa causa de rescisão quando houver revelado, por comportamento posterior, não os considerar perturbadores das relações de trabalho.
Em sentido contrário entenderam os Venerandos Juízes Desembargadores, relevando que
"o jogador, como qualquer outro trabalhador tem de fazer ponderações, incluindo económicas. A decisão de abandonar uma actividade remunerada não se toma de ânimo leve, sobretudo se ela se traduz em ficar desempregado e sem que no imediato se equacione um novo vínculo, a par da probabilidade de a empregadora não lhe pagar voluntariamente as retribuições vincendas porque contesta a justa causa”,
bem como que
“O facto simples de se ter mantido com o objectivo de poder ir treinando emantendo a forma não apoia a ideia de que não considere os actos da ré perturbadores da relação de trabalho. O objetivo era sair, mas sem que com tal prejudicasse a sua condição física e logo a sua "força " negocial. Neste tipo de atividade justifica-se alguma flexibilidade, não se retirando da simples "manutenção do contrato durante algum tempo” que, do ponto de vista do jogador, a violação contratual não inviabilize a relação laboral atenta a motivação demonstrada nos autos”-
Consequentemente, foi concedido provimento ao recurso interposto e, em consequência, foi revogada a decisão recorrida e a ré condenada a pagar ao autor a quantia de €66.000,00 (sessenta e seis mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal a contar da citação e até pagamento.
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Sumário:
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Incumbe ao empregador clube ou sociedade desportiva o dever de proporcionar ao praticante desportivo as condições necessárias à participação efetiva nos treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais da competição desportiva - 11, b), do RJCTPD
Constitui garantia do praticante desportivo a prestação do trabalho inserido no normal grupo de trabalho, excepto em situações especiais por razões de natureza médica ou técnica - artigo 14º, d), da CCT.
Razões essas que no caso não se verificam, pelo que o autor, fortemente cerceado no direito ao treino, tem direito à resolução do contrato por justa causa, a qual não é excluída pelo facto de o trabalhador ter suportado a situação de violação de direitos durante 4 meses até receber uma outra proposta contratual, com o objectivo de, no entretanto, ir treinando e mantendo a forma física, desse comportamento não se podendo extrair que desvalorizou a actuação ilícita da ré.
“
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