Analisa, além do mais, o regime processual a considerar na sequência da arguição da nulidade da prova, por intromissão ilícita nas telecomunicações, bem como a consequência da prova obtida de forma ilícita.
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No âmbito de processo laboral em que se discutia a regularidade e licitude do despedimento de uma trabalhadora, foi junto aos autos pela trabalhadora após apresentação da contestação um conjunto de documentos com vista à prova dos factos por si alegados, de entre os quais um conjunto de e-mails que a entidade empregadora alegou terem sido obtidas de modo fraudulento, mediante intromissão ilícita nas telecomunicações, sem autorização da entidade empregadora e contra a vontade da mesma e em violação do segredo e dados sigilosos da mesma.
Nessa sequência, alegou que tais documentos constituíam prova nula, devendo ser desentranhados dos autos.
Já para prova do alegado, requereu a entidade empregadora que “a nomeação de Perito ( com as qualificações de engenharia informático) para efeitos de apurar e esclarecer, quem, quando, como e com que meios/vias, foram obtidos os mails e toda a restante documentação junta aos autos, bem como, de que endereço de IP, endereço de mail remetente (ou por outra via), por que meios e em que data/s os mails foram enviados ou reencaminhados para o seu destinatário (que consta no cabeçalho de cada um dos mails) e apurar outros elementos que se considerem relevantes.”
Após determinada tramitação processual que aqui não cumpre analisar, foi interposto recurso com vista a apreciar, além do mais, as seguintes matérias:
a) Da ilicitude da prova referente a determinados documentos (conversas de Whatsapp) por violação da confidencialidade da mensagem pessoal e os restantes documentos (mails, documentos/informação contabilística, faturas, recibos, contratos (avença, contrato de trabalho e outros contratos) sentenças judiciais, entre outros, por violação do sigilo e inviolabilidade das correspondências mantidas por telecomunicações; e
b) Da admissão da perícia ré/requerida.
Quanto a estas matérias, transcrevendo o referido aresto, temos que
“A Constituição da República Portuguesa, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias, consagra no art.º 26 o direito à reserva da intimidade da vida privada e no art.º 34 o direito ao sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação, bem como a proibição da ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, ressalvados apenas os casos previstos na lei em matéria de processo criminal (art.º 179 CPP).
Por seu lado, o art.º 32-8 CRP determina a nulidade, no processo criminal, de todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, na correspondência ou nas telecomunicações. A norma é repetida no art.º 126-3 CPP.”
“As normas dos artigos 32 e 34 da Constituição, embora visem diretamente limitar a atuação das autoridades públicas no processo criminal, tendo em conta os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos particulares, aplicam-se também analogicamente no domínio do processo civil e, processual e extraprocessualmente, às pessoas privadas, a quem por maioria de razão é vedada, nomeadamente, a intromissão na correspondência, telecomunicações e demais meios de comunicação, sem que, no entanto, se lhes apliquem as exceções indiretamente privadas no art.º 34º CTP, para as autoridades intervenientes no processo criminal.”
O art.º 194º do CP pune a intromissão, a tomada de conhecimento e a divulgação do conteúdo de telecomunicações
O termo “telecomunicações” abrange as comunicações eletrónicas: são telecomunicações “todos os procedimentos técnicos de transmissão incorpórea à distância de qualquer espécie de informação ou notícia dirigida a um destinatário individualizado, …, mas inclui os e.mails recebidos pelo destinatário e guardados no seu computador, mesmo que não sejam abertos ou conhecidos pelo seu destinatário.
As disposições do Código Civil sobre os direitos de personalidade, constam dos arts. 70º a 81º, abrangendo normas que visam garantir o sigilo das cartas-missivas confidenciais (arts. 75 e 76) e de escritos a elas equiparados (art.º 77) e determinam que o destinatário de carta não confidencial só dela pode usar em termos que não contrariem a expetativa do autor (art.º 78) bem como numa norma geral que a todos impõe o dever de reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem (art.º 80º).
“É prova ilícita aquela que é proibida por a sua apresentação violar, em si mesma, direitos fundamentais (ex.: diário íntimo), bem como aquela que se forma ou obtém por processos ilícitos (exs: o depoimento produzido sob coação; o documento subtraído à parte contrária).”
Conforme explicado, a questão da prova ilícita, obtida ou utilizada com violação de disposições de direito material, não encontra no C.P.C. (ou C.P.T., diga-se) uma norma expressa a considerar essas provas nulas, ao contrário do que sucede no âmbito do C.P.P. (cfr. arts. 125.º e 126.º).
Ora, a prova ilícita pode assim ser considerada em virtude da violação normativa em três fases distintas: Na obtenção, na produção ou na valoração da prova.
Assim, e citando José Lebre de Freitas,
“O interesse público na descoberta da verdade não pode nunca, só por si, sobrepor-se ao direito do sigilo da correspondência, a não ser no âmbito do processo penal, nos casos e circunstâncias descritas no CPP e cobertas pelo art.º 34-4 CRP, como mostra a norma deste artigo e a do art.º 417-3 CPC.
(…)
Importa sublinhar que, “a lei processual civil não estabelece nenhum momento próprio para a dedução da questão atinente à ilicitude probatória, nem para a decisão da mesma, mas parece-nos líquido que tal questão deverá ser invocada em sede de exercício do contraditório, após o requerimento de proposição do meio de prova, sendo que, contudo, relativamente a determinados meios de prova deverá ser suscitada aquando da sua produção probatória.
A questão incidental assim suscitada deverá - após o exercício do direito de resposta da contraparte, como manifestação do respeito pelo princípio fundamental do contraditório – ser objecto de decisão, interlocutória ou final”
De maneira a que, constando das mensagens enviadas via whatsapp, das quais a trabalhadora não foi interveniente, que “as mensagens e chamadas são encriptadas ponto a ponto. Ninguém fora desta conversa, nem mesmo o WhatsAPP pode ler ou ouvi-la”, foram consideradas como obtidos de forma ilícita, e, dessa forma, feridas de nulidade por violação do n.º 8 do art.32.º da C.R.P..
Já quanto à prova pericial requerida pela entidade empregadora, na sequência da junção dos documentos por parte da trabalhadora após apresentação de contestação, em face da alegação de que os respetivos documentos terão sido obtidas de modo fraudulento, mediante intromissão ilícita nas telecomunicações, tratando-se, por isso, de prova nula, decidiu o Tribunal da Relação de que será de aplicar por analogia o regime legal previsto nos arts. 446.º a 449.º do C.P.C. – regime aplicável à “Ilisão da autenticidade ou da força probatória de documento”, tendo em vista determinar se os documentos são atendíveis por terem sido ilicitamente obtidos ou, pelo contrário, se não são atendíveis por não terem sido obtidos de forma ilícita, por aplicação analógica, nos termos do n.º 1 do art. 10.º do C.C..
De maneira a que decidiu o Tribunal da Relação pela realização da perícia requerida.
Sumário:
“I – É prova ilícita aquela que é proibida por a sua apresentação violar, em si mesma, direitos fundamentais, bem como aquela que se forma ou obtém por processos ilícitos.
II – Num contexto processual em que uma parte vem requerer a junção de documentos e a contraparte requer o desentranhamento de tais documentos, com fundamento em que foram obtidos de modo fraudulento, mediante intromissão ilícita nas telecomunicações, tratando-se, por isso, de prova nula, haverá que aplicar por analogia o regime dos artigos 446.º a 449.º do Código de Processo Civil tendo em vista determinar se os documentos são atendíveis por terem sido licitamente obtidos ou se, pelo contrário, não são atendíveis por terem sido obtidos de forma ilícita.”
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