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Foto do escritorTiago Oliveira Fernandes

Acórdão do S.T.J., proferido no âmbito do processo 2150/22.3T8TVD.L1.S1, datado de 09/07/2024

Analisa a aplicação da indignidade sucessória em caso da prática de um crime de homicídio cometido por inimputável.

 

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Não é por ser herdeiro legitimário que o cônjuge não pode ficar privado da legítima.

Ainda que não seja diretamente relacionado com o regime de casamento celebrado, em termos genéricos, o autor da sucessão poderá, por testamento, deserdar a cônjuge (ou outro herdeiro legitimário), desde que estejam preenchidos os requisitos legais, que são os seguintes:

“a) Ter sido o sucessível condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;

b) Ter sido o sucessível condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;

c) Ter o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos.”

 

Ora,

 

No caso concreto, determinada pessoa foi constituída arguida em âmbito de processo crime e, nos respetivos autos, foi decidido que

- o arguido vitimou fatalmente o seu pai e a sua irmã (que se encontrava grávida, o que também era do seu conhecimento);

- o arguido atuou com o propósito concretizado de causar a morte do seu pai e da sua irmã, e de representar que esse seria o resultado da conduta por si adotada; e que

- o arguido foi considerado como inimputável quanto à prática dos crimes de homicídio e aborto.

 

Como tal, foi absolvido a final pela prática de um crime de Homicídio Qualificado na pessoa de seu pai, sendo decidido que

“é inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível - Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade;

- decidindo-se não lhe aplicar qualquer pena, declarando-se que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por sua parte, e aplicando-se-lhe uma medida de segurança de duração não inferior a três anos e não superior a vinte e cinco anos, cuja execução não foi suspensa”.

 

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Nessa sequência, foi proposta ação pelos demais herdeiros legitimários, peticionando que fosse declarada a indignidade sucessória do respetivo réu, face ao seu pai, nos termos do disposto no artigo 2034.º do Código Civil ou, subsidiariamente, ao abrigo do instituto do abuso de direito.

 

No caso em apreço, refere o referido aresto que

“Está em causa, na norma do artigo 2034.º, al. a), do Código Civil, uma sanção civil para fatos ilícitos penais, que a lei, que consagra a indignidade sucessória, quer que estejam provados para além de toda a dúvida, exigindo por isso um processo penal para a alegação e prova dos mesmos.

Todavia, o legislador exigindo uma sentença de condenação não regulou os casos de absolvição, por ausência de capacidade de culpa jurídico-criminal do agente, acompanhada da sujeição do réu a uma medida de segurança. Uma interpretação extensiva da norma de forma a abarcar no seu alcance os homicídios praticados por inimputável sempre seria discutível, dado que não teria reflexo, ainda que mínimo, na letra do preceito, que exige expressamente uma sentença de condenação. Ora, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso não pode ser considerado pelo intérprete.

Resta, então, saber se estamos perante uma lacuna a ser preenchida pelo recurso à analogia ou pela criação de uma norma ad hoc, nos termos do artigo 10.º do Código Civil.

A questão reside em saber se estamos perante uma falha ou incompletude da lei no sentido de uma ausência de resposta do sistema normativo para uma questão juridicamente relevante, que merece ou postula uma regulação no ordenamento jurídico. Ou se, pelo contrário, se trata de um caso que o legislador não quis sujeitar à norma excecional e que por isso segue o regime-regra da capacidade sucessória passiva do agente.”

 

Concluiu o S.T.J. que, e além do mais,

“o exercício, pelo réu, do direito a herdar constitui um abuso do direito e como tal deve ser paralisado, devendo ser chamados a suceder os restantes parentes sucessíveis do seu pai, autores da presente ação, nos termos dos artigos 2037.º, n.º 1, e 2133.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil.”;

(…)

“O direito a herdar do réu não é absoluto e a sua natureza legal não impede que o seu exercício tenha de ceder perante imperativos ético-sociais relacionados com sentimentos de justiça entre os quais se incluem o respeito pelo sofrimento da família da vítima com a perda do seu ente querido num quadro de extrema violência”;

(…)

“O direito a herdar de alguém a quem o herdeiro matou é um direito de natureza patrimonial que, in casu, para além de ser contrário à moral pública, entra em conflito com a tutela do direito à vida e a segurança de terceiros, por significar uma redução do dever de o Estado prevenir a violência.

A paralisação deste direito não deixa, como vimos, a pessoa considerada inimputável em situação de debilidade económica uma vez que o Estado tem deveres de apoio social e de promover a sua inclusão na sociedade.”; e que

“Atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, atentou contra a vida do pai e da irmã, e vem depois, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, reclamar o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único.”

 

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Sumário:

“I – O artigo 2034.º do Código Civil, que consagra um elenco de causas de indignidade sucessória, não admite uma analogia livre, mas uma analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, é permitida analogia legis, mas não a analogia iuris.

II - Estamos perante uma questão de direito civil, de pendor marcadamente ético e moral, não sendo, portanto, aplicável, no domínio da indignidade sucessória, o princípio de direito penal da proibição da analogia in mala partem, ou seja, contra o autor do delito. É que, enquanto no direito penal estamos perante a tutela dos direitos dos cidadãos em face do poder punitivo do Estado, que lhes pode impor medidas restritivas da liberdade, no regime da indignidade sucessória apenas se nega a concretização de uma expetativa de herdar.

III - A aplicação analógica surge como desajustada à solução do caso concreto, já que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso.

IV – A solução de ser o julgador a criar uma norma ad hoc elaborada dentro do espírito do sistema, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, é sempre delicada por constituir uma atividade semelhante à legislativa.

V - Assim, resta apreciar o caso destes autos à luz da figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil e que tem contornos estritamente objetivos, não sendo exigível a intenção do agente ou qualquer juízo de censurabilidade sobre a sua conduta.

VI - Para a determinação da existência de abuso do direito o que importa é analisar o resultado decorrente da conduta, perante os valores e princípios jurídicos vigentes, e não a conduta em si mesma.

VII – Atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, atentou contra a vida do pai e da irmã, e vem depois, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, reclamar o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único.

VIII – O exercício do direito a herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si causada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal.

IX – Admitir esta possibilidade seria contrariar o princípio normativo e constitucional da tutela absoluta do direito à vida (artigo 24.º da Constituição), que constitui também um princípio de ordem pública.”




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