Analisa a factualidade passível de preencher os elementos objetivo de ilícito do crime de ameaça (o mal futuro).
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Relativamente ao crime de ameaça, prevê o n.º 1 do art. 153.º do Código Penal que
“Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dia”
São assim elementos objetivos do tipo legal que o agente/autor dos factos dirija a alguém uma ameaça contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, e que a ameaça seja idónea a causar medo ou inquietação (não sendo necessário que a vítima sinta medo ou inquietação) quanto à possibilidade de que esse mal venha a ser concretizado no futuro.
Conforme jurisprudência dos tribunais superiores, “O mal futuro indispensável à verificação do crime de ameaça não se situa necessariamente num futuro longínquo ou mais ou menos distante. É futuro todo o mal que não se inicia com a ameaça ou imediatamente a seguir a ela.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do processo 81/18.0PBFIG-C1, datado de 29/01/2020.
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No caso em apreço, alegadamente os Arguidos proferiram as seguintes expressões:
«hei-de te partir os cornos, sua puta», «hei-de te matar», e «eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos».
Os autos foram objeto e despacho de arquivamento em virtude de o Ministério Público ter entendido que tais expressões não preenchiam o tipo objetivo de ilícito, pois que, além do mais, “do teor da expressões proferidas não resulta que os arguidos estivessem a anunciar um mal futuro, mas antes presente, no contexto de uma desavença atual entre todos”.
Em conformidade, na fase de instrução foi proferido despacho de não pronúncia, confirmando assim o despacho de arquivamento, tendo tal despacho sido objeto de recurso.
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Ora,
Entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra que a
“expressão “hei-de te matar” a qual encerra a ideia não de um momento presente mas de futuro. Diferente seria se se tratasse da expressão vou-te matar (ainda que não necessariamente, pois poderia ainda assim, dirigir-se a um momento futuro) ou de forma mais inequívoca vou já matar-te, seguida de qualquer ação nesse sentido.”
(sublinhado nosso).
Pois que,
“Inexistindo qualquer ato de execução ou início de execução do dito mal ameaçado, a conclusão plausível que se afigura é a de se estar perante a ameaça de um mal futuro, pretendendo-se com tal conduta afetar a liberdade de determinação da visada assistente, causando-lhe ou provocando-lhe medo e inquietação no modo de agir no seu dia a dia.”
Em relação à expressão “Eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos” entendeu também o Tribunal da Relação de Coimbra que, “sem prejuízo de aparentemente inculcar a ideia de uma ação presente, a verdade é que tal afirmação está projetada para um mal futuro, na medida em que o seu agente nada faz naquele momento quanto ao mal ameaçado, que é o de ir buscar a arma e aviá-los a todos. Ou seja, inexiste qualquer ato de execução deste mal ameaçado. O que fica ou sobressai da conduta do agente é que este deixou a pairar no ar a ideia de que tem uma arma/espingarda e que a todo o momento a pode ir buscar e aviá-los, sendo certo que este aviar tem o sentido de disparar e matar. E com esta atitude o agente quis com certeza intimidar e coartar a liberdade de determinação da visada assistente querendo causar-lhe ainda receio e inquietação no seu modo de vida.”.
Assim, tendo por base o entendimento sufragado quanto ao facto de as expressões “hei-de te matar” e “eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos” se dirigem a um momento futuro (e preenchendo naturalmente os demais elementos objetivos de ilícito) decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra pela revogação do despacho de não pronúncia e substituição do mesmo por um outro que pronuncie os arguidos pela prática pela prática, cada um deles, de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), ambos do C.Penal.
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Sumário:
“I - A expressão “hei-de te matar”, desacompanhada de actos de execução ou de início de execução, configura o crime de ameaça, porque encerra a ideia não de um momento presente mas futuro, de modo a afectar a liberdade de determinação da pessoa visada.
II - A expressão “eu vou já buscar a espingarda que vos avio a todos” está projetada para um mal futuro, na medida em que o seu agente nada faz naquele momento quanto ao mal ameaçado, que é o de ir buscar a arma e aviá-los a todos, antes deixando a pairar no ar a ideia de que tem uma arma/espingarda e que a todo o momento a pode ir buscar e aviá-los, sendo certo que este aviar tem o sentido de disparar e matar.
III - O tempo verbal utilizado pelo agente não determina, necessariamente, o enquadramento legal da conduta. “
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