De forma sucinta, no âmbito da “legislação Covid-19” foram estabelecidos regimes excecionas de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais e contraordenacionais.
Inicialmente, tal suspensão foi inicialmente introduzida pelos n.ºs 3 e 4 do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, vigorando entre o dia 09 de março de 2020 até ao dia 03 de junho de 2020, num total de 87 dias (cfr. art. 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e arts. 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29 de maio).
Posteriormente, no decorrer da evolução da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 e doença COVID-19, voltou a vigorar um regime de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais e contraordenacionais introduzido pelo n.º 3 do art. 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, vigorando entre 22 de janeiro de 2021 até ao dia 5 de abril de 2021, num total de 74 dias (cfr. art. 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e art. 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).
A questão que nos propomos analisar prende-se com a aplicação deste regime de suspensão de prazos de prescrição quanto a factos praticados anteriormente à vigência da sua suspensão, nos termos sobreditos, sendo que a jurisprudência tem divergindo quanto a esta matéria.
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Assim, a favor da não aplicação do regime excecional da suspensão do prazo de prescrição, temos, entre outros, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 76/15.6SRL.SB.L1-5, datado de 21/07/2020; Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 207/09.5PAAMD-A.L1-5, datado de 09/03/2021, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 201/10.3GBVRS-E1, datado de 23/02/2021, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 28.06.7IDFAR-A-E1, datado de 26/10/2021; Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo 300/19.6Y9PRT-B.P1, datado de 14/04/2021, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo n.º 200/09.8TASRE.C3, datado de 07/12/2021, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo n.º 179/15.9FAF.G2, datado de 25/01/2021.
Os argumentos a favor prendem-se essencialmente com o facto de se entender que o fundamento de a existência de um prazo prescrição estar relacionado com as finalidades da pena (sendo que, em conformidade com o teor dos n.ºs 1 e 2 do art. 40.º do C.P., as finalidades atendíveis na aplicação de umas penas residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade e, perfilhando o entendimento de Jorge de Figueiredo Dias, os fins das penas apenas só podem ter natureza preventiva – prevenção geral, positiva ou negativo, e especial, positiva e negativa, e nunca de natureza retributiva), e com o facto de o decorrer do tempo tornar as penas irrelevantes, desnecessárias ou, pelo menos, contraproducentes, em face aos danos causados pela pena.
Além de que é entendimento generalizado da jurisprudência e da doutrina, alicerçado no art. 2.º e 29.º da C.R.P., e concretizado no art. 2.º do Código Penal e 3.º do R.G.C.O. que, considerando a prescrição ser um prazo de natureza substantiva e processual (mista), e face da proibição da aplicação de normas que agravem a situação processual do arguido com efeitos retroativos (e sendo o alargamento do prazo de prescrição um agravamento da responsabilidade penal dos arguidos), estamos perante uma situação expressamente proibida pelos referidos normativos.
Nesse sentido, de frisar ainda que o n.º 6 do art. 19.º da C.R.P. expressamente proíbe a retroatividade da lei criminal no âmbito do estado de sítio ou de emergência, aplicando-se as nuances acima mencionadas de forma inequívoca ao caso em apreço.
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Já a favor da aplicação deste regime excecional da suspensão do prazo de prescrição temos os Acórdão proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 89/10.4PTAMD-A.L1-9, datado de 11/02/2021; Acórdão proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 309/20.7YUSTR.L1, datado de 16/03/2021; Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo 472/21.0Y5LSB.L1-5, datado de 05/04/2022; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo 806/21.7T9PBL.C1, datado de 17/03/2022; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 500/221, de 9 de junho de 2021;
Os argumentos a favor prendem-se essencialmente com o facto de se entender que o prazo de suspensão da prescrição se mantém o mesmo, tendo este “suspendido temporariamente” por razões de superior interesse público; e pelo facto de o instituto da prescrição residir, entre outros, na “responsabilização do Estado pela inércia ou incapacidade para realizar a aplicação do Direito no caso concreto”, a qual foi afetada pela pandemia, e que determinou a aplicação de um conjunto de medidas destinadas a conter o risco de contágio e propagação de doenças.
Por outro lado, fundamentam tal posição no facto de que, a entender não se aplicar a factos praticados anteriormente, seria prejudicar o exercício do direito de queixa por parte do ofendido/vítima.
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Em face dos argumentos aduzidos, acolhemos a primeira das duas posições enunciadas, adotando a posição de que a suspensão dos prazos de prescrição relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados (por ação ou omissão) em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro viola o princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional, agravando da responsabilidade penal dos arguidos e, como tal, é inadmissível do ponto de vista constitucional, quando interpretado no sentido de alargar o prazo de prescrição dos processos/procedimentos criminais e contraordenacionais.
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